quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

P.S.: SEM PALAVRAS

Hoje minha mente amanheceu vazia. Sem sons, sem imagens, sem lembranças. Foi até emocionante escutar o silêncio que retinia na minha cabeça, porque, sabe, ela nunca está quieta. Está sempre retumbando algum argumento, criando alguma trama ou, então, refletindo sobre conhecimentos quase completamente inúteis.

Mas a alegria, de ver minha cabeça assim quieta, durou poucos minutos, porque me dei conta de que no meio deste silêncio abençoado, surgia um ponto de interrogação que eu não podia responder e, por isto, se tornava bastante inconveniente.

Como o cérebro estava vazio eu perdi a identidade. Eu não encontrei as minhas memórias, os acontecimentos da minha vida, todas aquelas coisas que me tornavam 'eu'. Simplesmente assim: eu não lembrava quem eram meus pais; quando eu tinha nascido; onde havia crescido; se tinha casado ou não; se tinha filhos; se tinha estudado; se trabalhava e onde. 

Esse fato se tornou um tanto preocupante, porque eu não sabia exatamente onde estava e para onde deveria voltar; se é que eu tinha um lugar para voltar.

Aí me sentei aqui no canteiro desta praça para tentar encontrar uma solução, mesmo que temporária, para a situação em que me metera, embora eu nem me recordasse como tinha parado nesse lugar. 

Felizmente, eu nunca fui uma pessoa de me enervar com facilidade. Mesmo diante de alguma situação arriscada, eu conseguia ficar em paz. Por isso que pareço estar apenas desfrutando da sombra das árvores.

Quer dizer, eu sinto que era ou sou assim, porque, sabe, deves estar pensando como sei que sou assim ou assado se eu perdi todas as memórias passadas e recentes. Mas é porque tenho essa sensação, de que falei, que consigo controlar os nervos, mesmo quando a ratoeira já estalou no meu pescoço. 

Então, como dizia, eu me sentei aqui e fiquei buscando algo que pudesse me dar uma direção ou uma indicação de quem eu era, ou sou, para poder retornar para não sei onde. Afinal eu não podia ser assim, feito uma página em branco num caderno que foi pouco usado pelo aluno. Deviam estar preocupados comigo. 

Se é que eu tinha alguém que se preocupasse comigo.

No meio deste estado de concentração absoluta em buscar informações numa mente que nenhum sinal de senso de pertencimento, ou de identificação, apresentava, observei as roupas que eu estava usando. São estas mesmas que uso agora: calça, camisa e sapatos brancos. Quer dizer, deviam ter sido, porque agora estão muito enxovalhados.

Será que passei muito tempo nas ruas? Apanhei muita chuva? Há quanto tempo não tomo banho? Perguntas sem respostas, naturalmente, porque não lembro ou não quero lembrar. 

Aliás, sabes se estou cheirando mal? Ah! Não queres te aproximar muito, porque não me conheces, deves ter desconfiança de alguém que anda assim, desmemoriado, pelas ruas, com roupa branca suja. 

“Deve até cheirar mal”, este, com certeza, é teu pensamento diante da minha pergunta. 

Sim, devo ter um cheiro ruim porque as roupas dizem que perambulo por aí a mais tempo do que penso, neste estado bom e mal de não ter memórias, de não ter ninguém ou nada com que me preocupar. 

Portanto, não te pedirei o favor de novo, descansa. Creio, também, que não te falarei destes meus desencontros, pois percebo que já me olhas de forma estranha, como se quisesses me afastar de ti, ou, ao menos fingir que não me vês. 

Mas e agora, o que é isso? O que te acontece? Agora queres me segurar! Estás prendendo meu corpo com garras de aço, apertando minhas margens. E me cheiras até! E o que é isto na tua mão? Uma arma? 

Não, não faz isso, por favor, não. Isso dói, isso dói muitooo. Por favor!

......

Sentada num banco na praça, a moça observava a cena a suaa frente curtindo uma mistura de curiosidade, espanto e certa melancolia. 

A princípio, a criatura enxovalhada pela chuva e pelos dias em que ficou exposta as intempéries desfrutava uma paz quase beatífica. Seus cabelos compridos estavam emaranhados pela sujeira. Suas roupas nada mais eram que uma calça velha e ensebada, marrom, e um par de chinelos de dedo gasto pelas andanças nas vias públicas.

Seu rosto, transfigurado por uma barba mal aparada de um lado, era tão sujo quanto o resto do corpo. E mesmo um tanto distante, ela podia perceber que os olhos escuros eram um misto ondulante de loucura e sanidade, não sabia dizer se pelas dores que sofreu ou pelo uso de alguma droga lícita ou não.

Às vezes dormitava esta criatura, as vezes levantava, dava uns passinhos em alguma direção, mas acabava voltando para o lugar que hoje escolheu para ficar: um dos canteiros da Praça Tamandaré, debaixo das árvores, porque o sol tinha caído sobre Rio Grande e consumia pedras, casas, insetos e pessoas, num fogaréu invisível.

Mas algo quebrou esse estado de semi-atividade daquele ser que ela já tinha percebido que perambulava pelas ruas da cidade há mais de dois anos. 

Ele se levantou e se dirigiu a uma das lixeiras existentes na praça e que, muitas vezes, os passantes não usavam para depositar os dejetos que produziam displicentemente. A criatura remexeu ali, circulando o círculo para lixo, como se precisasse ver de todos os ângulos para descobrir o que queria.

“Deve estar procurando comida”, pensou a observadora impassível. “Acho que eu vou...” 

Não completou o pensamento, porque quando ia levantar, aquilo que deveria ser um homem parou repentinamente de rodear a cesta. Aproximou a cabeça da boca de lixo, olhou bem olhado, depois enfiou o braço lá dentro, remexendo o conteúdo, puxando rapidamente algo para fora. 

Era um caderno, aparentemente. Meio enxovalhado, mas a moça percebeu, enquanto o tal vagabundo virava algumas folhas, que o mesmo estava praticamente vazio. O sujismundo pegou o caderno, enfiou debaixo do braço, fedorento com certeza, e voltou calmamente para seu lugar.

Jogou o achado em cima do pano decrépito que usava como cama. E se recostou numa árvore ao lado dele. Volta e meia olhava desconfiado para o caderno. Às vezes parecia murmurar alguma coisa. No mais das vezes só olhava fixamente para ele.

Até que num ato de violência sem sentido catou o caderno do chão. Sentando-se, o apertou com força contra suas pernas raquíticas, com uma cara meio angustiada, meio raivosa, até que abriu o mesmo pela metade e sacou de um bolso qualquer da calça um objeto. 

Era uma caneta esferográfica. Parecia ser algo que a besta humana carregava com cuidado, apesar de não zelar por mais nada em si mesmo ou ao seu redor. 

Empunhou a caneta como se fosse a espada com a qual lutaria a última batalha de uma vida inteira de guerras entremeadas de períodos de uma paz inexistente. Fulminou o papel com mãos trêmulas e murmurando palavras que, certamente, eram ininteligíveis. Vez ou outra levantava a cabeça com os olhos fechados, ou apenas passava a mão que segurava aquela faca neles, como se tentasse resgatar alguma coisa há muito perdida. 

Por fim, pingando suor sobre as páginas violentadas, parou de ferir o papel. Olhou para ele com cara séria. Depois relaxou. Levantou-se, olhou uma última vez o caderno e o jogou, bem como a caneta, para longe de si. Recolheu suas coisas e rumou em direção contrária a que tinha lançado o caderno. Saiu do local vagarosamente para recomeçar suas perambulações.

A moça não resistiu. Levantou-se e discretamente caminhou até o local onde o calhamaço de papel havia ido pousar. Abaixou-se e recolheu o que restou do caderno de páginas enxovalhadas e embrutecidas pelo tempo e pelo homem.

Tinha sido violentado, com certeza, pela mão dura daquela criatura estranha. A folha estava meio lacerada e parecia pingar gotas de sangue azul, que escorriam das letras mal desenhadas que o bruto havia tentado apor no papel.

Diziam:

Fui?

Sou?

Serei?

Sou...

despalavreado...

A moça engoliu em seco. Olhou para o caminho que aquele que havia se tornado invisível tomou. E o viu, dando seus passos perdidos rua a fora. Volta e meia ele parava e dançava uma musiquinha imaginária. 

E quando dançava levantava os braços, como a pedir palmas pelo show.

Agora ele parecia finalmente libertado.

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